Há alguns anos tive minha própria experiência com refugiados
de guerra provenientes do Oriente Médio. Uma amiga, minha vizinha e voluntária no
plantão fraterno de nossa casa espírita, procurou-me e relatou a tragédia de
uma família que estava hospedada três andares abaixo do meu, no prédio onde residíamos:
dois casais com filhos ainda bebês, um comerciante e seu irmão, advogado e jornalista,
todos provenientes do Líbano, precisavam de aulas de português.
Todos tinham fugido da guerra em seu país, hoje parcialmente
dominado pelo Hamas. Quando de minha estada em Israel, pude sentir o outro lado
dessa história, à parte os motivos políticos, sempre insanos e cruéis infelizmente
em sua maior parte, os israelenses sabem que em seu país a violência e o medo são latentes, já que estão cercados por
outros países de maioria muçulmana, muitos hostis, e fazem fronteira com a
Síria, hoje dramaticamente num processo talvez irreversível de auto destruição.
Fui convidada por eles, fluentes em francês e inglês, a
ensinar o português para as esposas e o irmão deles, o advogado jornalista. Todos
muito jovens haviam deixado suas famílias, casas, pertences, amigos, empregos, lembranças
caras à sua existência.
Lembro-me de nossa primeira reunião para traçarmos os parâmetros iniciais para o ensino de nosso idioma: impossível não se comover
diante da tragédia daquele grupo, que me olhava com olhares de expectativa (afinal,
quem era aquela brasileira?), mas de esperança (nos sorrisos tímidos), pois
naquele momento eu representava o início de uma convivência com a comunidade de
nosso país. E conversamos sobre coisas simples da vida, até que a pergunta
surgiu: qual a minha religião? Respondi que seguia o Espiritismo, uma
doutrina filosófica com desdobramentos éticos e morais com base no Evangelho de
Jesus e com raízes em Sócrates e Platão. Os olhos do advogado jornalista
brilharam e começou a dizer que a religião deles, eram todos drusos, também
tinha raízes em Platão e que considerava Jesus de Nazaré como um grande profeta
da Paz. Foi o elo que faltava. Daí em diante, estabelecemos um contato que foi
além do relacionamento professora-alunos, pois a confiança passou a fazer parte de nossas aulas. Pude sentir novamente na alma o que os Espíritos sempre disseram acerca da
fraternidade universal, pois ali, naquela sala, onde as jovens faziam questão
de servir-me café à moda oriental, numa aula de português, tinha diante
de mim olhos de esperança, pois se o
Brasil representava naquele momento um reinício de vida quase normal, a tristeza de
ter que deixar tudo para trás permanecia latente no ambiente – e principalmente
o advogado jornalista que pretendia voltar numa insistência melancólica diante do
improvável.
Tempos depois o restante da
família conseguiu se estabelecer definitivamente no país e queria que todos
estivessem juntos.
A experiência pessoal de encontrar pessoas com anseios, expectativas positivas apesar da extrema gravidade de sua situação, portadoras de um excelente nível
intelectual e que respeitavam as religiões pois, para minha surpresa, nelas viam um acesso a uma relação
mais humana para todos foi gratificante. Ficou a lembrança de boas conversas, sempre através do ensino do português,
de uma troca cultural rica de conteúdos e de esperança, e ainda de
interesse por aquele desconhecido Espiritismo que para eles significou um belo
caminho à fraternidade universal.
E tudo isso me veio à lembrança quando comecei a aprofundar-me na tragédia humanitária que hoje o
mundo assiste e o continente europeu tenta enfrentar, e, diga-se de várias
maneiras.
Não vou deter-me aqui a reproduzir o que a imprensa tem
fartamente informado. Mas detenho-me na
pessoa da criança flagelada pela insanidade de um país hoje semidestruído pela
barbárie. Aylan, sacrificado como o
filho de Abraão, porém sem a oportunidade de retornar à convivência paterna, pois
o deus-homem não conhece compaixão, ficará em nossas lembranças, novo arquétipo
de nosso inconsciente coletivo, inserto no mito do mártir que se sacrifica
mesmo sem ter a consciência do sacrifício.
A morte de Aylan é uma imensa bofetada no rosto de
todos aqueles que negam a si próprios a sua verdadeira natureza, humana e espiritual
e destinada à consciência regenerada para o Bem supremo.
Porém, a morte de Aylan
inspira hoje o espírito solidário de alemães e austríacos, a essa verdadeira “invasão”
de muçulmanos (aliás prevista por uma médium em 1996 durante um evento sobre
Mediunidade numa grande casa espírita em São Paulo), porém, “invasão” esta motivada
não pelas razões políticas do passado, mas pela tragédia da guerra e do ódio
hoje vigentes naquela parte do mundo.
Interessante notar que
a Europa, histórica, militar e politicamente co-responsável por guerras
monumentais locais e mundiais ao longo de sua longa trajetória, hoje é convidada
a – quem sabe – resgatar pelo amor e
pela solidariedade os fatos dolorosos de seu passado remoto e recente.
Logicamente não podemos pensar ingenuamente sobre todo esse
processo, já que ele implica em múltiplas faces de continuidade, mas não podemos deixar de supor que este pode ser o começo de uma nova civilização europeia, a partir da união entre Leste e Oeste, Ocidente e Oriente, que ao longo dos milênios foram atores de guerras fratricidas por motivos religiosos ou políticos.
Mesclada com outras naturezas, outros gens, outras
culturas, outras falas, outros idiomas, outras filosofias, outros modos de
pensar e ver a vida, este pode ser apenas o começo de uma nova existência para os que
chegam perseguidos pela tragédia, e para os que lá residem à parte do processo
traumático atual, mas não distantes da convivência com a guerra que sempre
perseguiu o povo europeu.
Enquanto isso, para nós brasileiros, separados por um oceano
desse drama também acolhemos outras vítimas, além daquelas oriundas das guerras
fratricidas, as dos flagelos naturais, que igualmente precisam de nossa
solidariedade e apoio.
Enquanto isso também, continuamos com nossa luta a favor da
ética e da moral em nossa já combalida e decadente política nacional. Lutamos contra a crise econômica que já bate
às nossas portas. Lutamos contra a criminalidade e as injustiças, lutamos
contra o aquecimento global e a matança indiscriminada de nossas fauna e flora.
Triste e melancólico final de ciclo evolutivo... Colhemos o
que plantamos, porém sem desanimar de plantar novas sementes com base na ética
e na moral de Jesus, e cuidar dos frutos verdes que já despontam entre nós, e
que nos sustentam a esperança de esperançar, porém ativa, nunca acomodada ou na
expectativa de que os Bons Espíritos façam o que nos compete fazer.
Sonia Theodoro da Silva, bacharelanda em Filosofia.